A decisão que há 25 anos salvou do afogamento numa barragem o extraordinário património rupestre, com mais de 20 mil anos, no Vale do Côa, junto ao Douro

Vale do Côa

Source: Visitportugal.com

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Confira a crônica desta semana do correspondente da rádio SBS, em Lisboa, Francisco Sena Santos.


Era uma vez, há 22 mil anos, num vale de fragas xistosas por onde corria um rio… 


Esta podia ser uma maneira de começar a história dos milhares de gravuras rupestres esculpidas nas rochas por onde corre o rio Côa, afluente do grande Douro. Mas esta descrição pode ser imprecisa: os 22 mil anos podem ser muitos mais. 


Está confirmado que tudo começou há mais de 20 mil anos, mas foi só em 1994 que o mundo as (re)descobriu. No Vale do Côa, no nordeste de Portugal, durante milénios, as rochas de xisto e tela chegaram até nós como a maior concentração ao ar livre de arte rupestre do Paleolítico Superior do mundo. É como um “clarão” a mostrar-nos a pré-história - uma chave para ajudar a compreender tempos remotos da civilização.

Está ali, naquele vale do rio Côa, um ciclo milenar de arte rupestre: em vários tempos sucessivos o homem recorreu às superfícies xistosas do vale para deixar marcas. Pré-história, Época Histórica, Época Moderna. Exemplo mais poderoso: na chamada  Canada do Inferno, temos uma síntese de todas em poucos metros – rochas onde se confrontam Paleolítico Superior e Idade do Ferro.


Cavalos “com duas cabeças”, auroques aos pares orientados para lados diferentes, machos que lutam, fêmeas que caminham, veados, cabras, são algumas das gravuras há milhares de anos esculpidas na rocha.


Tudo está numa zona remota do norte de Portugal. No fundo de um vale, em lugares de muito difícil acesso mas que tem na encosta das montanhas vinhas onde se faz do melhor vinho do Douro e do Porto.


As gravuras começaram a ser descobertas nos anos 90 do século XX por um professor da escola da vila de Foz Côa, um homem apaixonado pela arqueologia. Tinham começado ali obras para a instalação de uma enorme barragem e ele decidiu tentar explorar a pedra que começava a ser mexida. Encontrou uma primeira série de gravuras que lhe pareceram rupestres. Deu o alerta e depressa chegaram especialistas internacionais em arqueologia.


Foram sendo descobertas cada vez mais gravuras, centenas.

Ficou aberto o choque: se a barragem avançasse, as gravuras com milhares de anos ficariam perdidas. O debate tornou-se intenso entre os que defendiam a preservação das gravuras rupestres no seu ambiente natural e os que queriam ver concluída uma barragem na qual já se tinha investido muito dinheiro e que, argumentava-se, traria empregos e água a uma região carecida de ambos.


Em Janeiro de 1996, o governo chefiado pelo socialista António Guterres, hoje secretário-geral da ONU, decidiu suspender os trabalhos de construção da barragem de Foz Côa, empreendimento que iria submergir o maior núcleo de arte rupestre paleolítica de ar livre conhecido até então. A medida visava, em primeiro lugar, esclarecer toda a real dimensão e importância científica e patrimonial dos painéis rupestres identificados até à data – “num quadro de serenidade e rigor científico” – para fundamentar uma decisão definitiva sobre o destino a dar … ou à barragem ou às gravuras rupestres, cuja coexistência se afigurava, desde o início, incompatível.


Os pareceres vieram em poucos meses e há faz agora 25 anos, em Agosto de 1996, o Governo de António Guterres criava o Parque Arqueológico do Vale do Côa.


Dois anos depois a UNESCO declarava aquele vale de gravuras rupestres como Património da Humanidade.


Foi criado um moderníssimo centro interpretativo, a zona está protegida, não há qualquer tipo de construção em volta e todos os anos milhares de visitantes, em pequenos grupos como tem de ser, admiram aquela forma de expressão de nossos antepassados de há milhares de anos, visitam assim um património da humanidade que está ligado a um outro também decretado pela UNESCO, o do rio Douro e dos seus sumptuosos vales cobertos por xisto com vinhas.


Ouça a crônica de Francisco Sena Santos clicando no botão 'play' na imagem que abre este artigo.


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