Brasileira fala da vida na prisão na Austrália: Parte 2

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"Foram voluntárias que me apoiaram na prisão. Sem elas, eu não teria conseguido", diz Eliane. Source: Moment RF / _hijiki_/Getty Images

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Other ways to listen

A ex-presidiária Eliane foi condenada a quatro anos de prisão por tráfico de drogas na Austrália e ficou na penitenciária feminina que reúne algumas das piores criminosas em Victoria, o Dame Philys Frost, em Ravenhall. Essa é a segunda de duas partes da ampla entrevista dada por Eliane, que falou conosco após ser deportada para o Brasil.


Pontos principais
  • Eliane Bastos aceitou uma proposta para levar cocaína para a Austrália e foi presa no aeroporto de Melbourne.
  • Ela conta como superou a depressão com trabalho e exercícios físicos na prisão.
  • De volta ao Brasil, tem dificuldade em arrumar emprego e de se perdoar pelo ocorrido.
O ano era 2019, a auxiliar de enfermagem, Eliane, estava com o então marido na prisão, dois filhos para cuidar e sem dinheiro quando recebeu a oferta para fazer um trabalho que supostamente iria resolver todos os seus problemas e ajudá-la a comprar uma casa própria.

Mas o trabalho que seria ‘simples e seguro’ era levar um quilo de cocaína do Brasil para a Austrália. E foi o que ela fez.
Já na chegada a Melbourne, com problemas na documentação, foi vistoriada pela autoridades do aeroporto, que acabaram descobrindo a droga em uma de suas malas.

Na , conversamos com Eliane sobre a oferta da viagem para a Austrália com 1 kg de cocaína na bagagem. Ela nos contou como foi pega, o julgamento e a ida para a prisão em Ravenhall, Victoria.
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Fachada da prisão de Dame Philys Frost, em Ravenhall, Victoria, onde Eliane a maior parte da pena de quatro anos. Source: AAP / JAMES ROSS/AAPIMAGE
Nesta segunda parte, falamos sobre o dia-a-dia na prisão. O convívio com mulheres de alta periculosidade, e também da justiça dos homens e da nossa justiça moral, o reconhecimento de um erro e um eterno complexo de culpa.

SBS em Português: Que horas você acordava e ia dormir?
Um dia típico era assim: sete horas da manhã eles abrem a cela. Neste complexo penitenciário, são grupos de 'casas' com oito quartos, uma cozinha, um banheiro e uma lavanderia. A final do dia, eles trancavam a porta da casa. Era nossa decisão deixar nossos quartos trancados ou abertos, eu deixava trancado pois tinha muito medo. Eramos em oito na casa.

Sete da manhã eles abriam a porta e nós tínhamos que estar em fileira na frente da porta pra contagem. Daí eles contavam de acordo com o nome, e deixavam a casa destrancada. As meninas tinham que tomar café, trabalhar, estudar, seguir a vida delas.

Ao meio-dia, aonde estivesse – por exemplo, se eu estivesse no trabalho ou no colégio – parava tudo pra eles fazerem uma nova contagem, e depois é liberado. Quatro da tarde, de novo, o mesmo processo de contagem, e aí, sete da noite, te trancam na casa até o dia seguinte.

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"Por mais que elas me tratassem super bem, eu não conseguia confiar em ninguém," lembra Eliane Source: AAP / AAP Image/David Gray
SBS em Português: Quando você diz que umas iam trabalhar e outras estudar, tudo dentro da prisão. Que tipo de trabalho era oferecido?
Eu trabalhei três anos na máquina de costura. Eu confeccionava as bolsas dos oficiais. Tinham umas (detentas) que faziam cortinas, roupas, tinha também culinária, bastante coisa dentro da prisão para trabalhar. Mas tinham meninas que não queriam trabalhar. Cada um é cada um. A maioria trabalhava e estudava, e os cursos tinham de secretariado, telefonista. Ofereceram muita coisa boa em relação a estudo, eles te incentivam muito pra quando você for para rua já ter um amparo. Também tinha academia. Isso que foi o ponto essencial pra mim.
Eu passava muitas horas dentro da academia sozinha, totalmente desequilibrada e botava minha frustração pra fora fazendo exercício. De quase 78 quilos, passei pra 60.
Eliane Bastos
Pra mim, mentalmente, era o que estava fazendo bem. Foi uma válvula de escape. Tinha muitas brigas dentro da prisão. Ali eram só mulheres, e muitas namoravam umas com as outras. Por causa de ciúmes, disso, daquilo, elas se avançavam. Tanto que essa brasileira minha amiga até arrumou uma amiga, tanto que me perguntava, ‘tu não gosta de menina?’, e eu dizia que não. Cada um é cada um, né?
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O regime da prisão era intenso, com as presas incentivadas a trabalhar ou fazer exercício, mas algumas nã faziam nada, recorda Eliane.
SBS em Português: Também às vezes é até uma tentativa de proteção, para se aliar...
Isso. E eu até dizia que, se dependesse disso, eu tava ferrada (risos). Até pela minha idade, né?

SBS em Português: Eu queria que você me contasse qual foi o momento mais triste da sua passagem pela prisão na Austrália, e também o melhor momento.
O pior foi quando tentei me matar.

Foi na primeira vez que eu falei com meu filho. Foi quando ele disse que tinha perdido tudo e não tinha ninguém, tava sozinho. (choro). Não tinha com quem ficar, era menor, e aquilo acabou comigo. E daí tentei me matar.

Apesar de ele ter 15 anos, era totalmente dependente de mim, só estudava. Não tenho família, não tenho pai nem mãe, e desde a morte dos meus pais, meus irmãos são afastados de mim.

O pai, preso. Então, acabei com a vida do meu filho. Tentei me matar. Estava tão fora de mim, mas Deus não queria, e eu tinha que passar por tudo aquilo. E passei. Um momento menos ruim foi quando comecei a aprender o inglês, mas aí já estava perto de ir embora, faltava uns seis meses.
The perimeter fence at Silverwater jail in Sydney's west, Monday, April 1, 2013.
"Tinha muitas brigas dentro da prisão. Ali eram só mulheres, e muitas namoravam umas com as outras." Source: AAP
Nestes seis meses antes de voltar para o Brasil, foi quando eu estava meio adaptada. Daí recebi a notícia do meu irmão, que tinha morrido de câncer. Não consegui me despedir dele. O momento de vir embora foi o momento de mais alegria.

SBS em Português: Quando você foi liberada?
Eles fazem um terrorismo disso, vou te contar... A gente passa por um monte de entrevista para ver se está apta para ir embora. Tu tens que escrever uma carta.

Eu comecei a pirar, eu não vou conseguir escrever em inglês, como vou embora?
Tive grandes amigas dentro da prisão, conheci pessoas maravilhosas que foram essenciais. Apesar do que elas fizeram, tinham um passado igual a mim
Eliane
Cada uma teve um porquê de estar lá dentro. Elas começaram a me ajudar na elaboração dessa carta.

SBS em Português: O comportamento do detento na prisão também é fundamental para garantir a saída.
Eu nunca tive nada de errado, realmente.

Apesar de não saber direito o inglês, não tive nenhuma briga, nenhuma confusão, tu fostes ‘top’ no comportamento, me dissera. Claro, eu era apavorada (risos).

Não me misturava, vivia bem isoladinha. Eles marcaram comigo no dia da minha saída, disseram assim – amanhã tu vai embora, mas tem que receber um telefonema pra autorizar a ir embora.

Me disseram que eu ia sair no outro dia, sete da manhã. Não dormi a noite toda. Não fui trabalhar nem nada, fiquei esperando e nada. Me cozinharam o dia todinho, e só fui sair da prisão sete horas da noite. Ainda bem que eu tenho um coração forte, ou eu teria empacotado. Foi 29 de março de 2023.
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A cidade de Melbourne: Eliane nem chegou a conhecer a cidade, desembracou no aeroporto e foi direto para a prisão Source: SBS
SBS em Português: Como voltou para o Brasil?
Eles pagam a passagem. Tem toda uma entrevista pra saber se tu tem condições financeiras. De onde eu teria? Aí explicam que a Austrália vai te pagar, mas se tu um dia tentar voltar para a Austrália, você tem que pagar essa passagem. E eu pensando, pra que que eu vou voltar aqui? Só agradeci e foi assim. Me disseram que por cinco anos não podia nem tentar entrar na Austrália.

SBS em Português: É a deportação. E você foi direto para o aeroporto?
Diretinho para o aeroporto. Te colocam lá dentro do avião e ficam com teus documentos, passaporte, e tu vai passando, tem paradas. Mas tu sempre é a última a sair do avião. Me deixaram em São Paulo. De São Paulo para Floripa, fiquei 12 horas dentro do ônibus. E cheguei.

SBS em Português: E quem estava lá na rodoviária te esperando?
Meu filho mais novo, tadinho. Esse que era menor na época. Daí eu pensava que todo meu sofrimento tinha acabado na Austrália, paguei minha dívida.

Daí começou um outro processo, porque perdi tudo, tudo. Móveis, meu filho mais velho vendeu tudo. Entrei em conflito com meu filho, não conseguiu me dar grana. Até minhas roupas sumiram todas, não tinha móveis, sapato, roupa. Agora era outro processo que eu teria que passar, e estou passando ainda. Mas nada mais que estar em liberdade, isso não tem preço.

SBS em Português: Você conseguiu voltar a trabalhar? Como a família e a sociedade estão te vendo?
A minha família me virou totalmente as costas. Tenho irmã mais velha, um outro irmão, eles não falam comigo, só com meus filhos. Me julgam e não me deram nenhum apoio. Recuperei pouca coisa, mas estou aí, batalhando pra tentar me erguer. Está muito difícil.
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"Para te falar a verdade, estou completamente espantada. Como é que consegui passar por aquilo? É muita tristeza." Source: Getty / In Pictures Ltd./Corbis via Getty Images
SBS em Português: Você trabalha com o que hoje?
Eu estou na área de saúde, eu era auxiliar de enfermagem. Agora estou como copeira no hospital.

SBS em Português: Você fala muito dessa dor. Você sentiu raiva de si mesma?
Sim, meus filhos me dizem que tenho que parar com essa coisa de culpa, mas não consigo.
Me julgo. Não consigo não julgar o que fiz. To em acompanhamento, mas não consigo.
Eliane Bastos
SBS em Português: Parece que sua justiça pessoal é mais cruel que a justiça australiana.
É verdade.

Eu me pergunto como tive capacidade de fazer aquilo. Destruí a minha vida, a dos meus filhos, essa recuperação está sendo muito difícil. Eu poderia ter negado a tal oferta, mas no desespero eu fiz. Eu estava doente mesmo, estava no desespero, com muitas responsabilidades em cima de mim.

SBS em Português: Qual a sua mensagem final?
Primeiro, não confiarem nessas saídas milagrosas. Isso é uma mentira.
Não existe saída milagrosa. Confiar nessas pessoas dispostas a te mostrarem um caminho mais fácil, não é assim. Tem que lutar.
Eliane Bastos
(Versão online: Fernando Vives)

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