Brasileira fala da vida na prisão na Austrália: Parte 1

Brasileira fala da vida na prisão na Austrália: ‘Tinha medo de tudo’

"Eu olhava da janela e via uma prisão enorme. Tem que achar forças para aguentar aquilo" Credit: WillSelarep/Getty Images

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Other ways to listen

A ex-presidiária Eliane foi condenada a quatro anos de prisão por tráfico de drogas na Austrália e ficou na penitenciária feminina que reúne algumas das criminosas mais periogosas do estado Victoria, Dame Philys Frost, em Ravenhall. Essa é a primeira de duas partes da ampla entrevista dada por Eliane, que falou conosco após ser deportada para o Brasil.


Pontos principais
  • Eliane Bastos aceitou uma proposta para levar cocaína para a Austrália e foi presa no aeroporto de Melbourne.
  • Ela cumpriu quatro anos de prisão até ser solta e deportada em 2023.
  • Eliane afirma ter aceitado a oferta por desespero, ela compartilha sua história como um alerta para outras mulheres
O ano era 2019, a auxiliar de enfermagem, Eliane Bastos, estava com dois filhos para cuidar e sem dinheiro, o marido na prisão, quando recebeu a oferta para fazer um trabalho que supostamente iria 'resolver seus problemas e ajudá-la a comprar uma casa própria'.

Mas o trabalho que seria ‘simples e seguro’ era levar um quilo de cocaína na sua bagagem e fazer uma viagem do Brasil para a Austrália.

"Eu aceitei, estava desesperada"

Já na chegada a Melbourne, com problemas na documentação, Eliane foi vistoriada pela autoridades do aeroporto, que acabaram descobrindo a droga em uma de suas malas.

Aos 49 anos e sem saber falar inglês, foi levada para a penitenciária de Dame Philys Frost, em Ravenhall, Victoria, onde mais tarde seria sentenciada a quato anos de prisão.
VICTORIA CORONAVIRUS COVID-19
Entrada da prisão de Ravenhall, em Melbourne, onde Eliane cumpriu sua pena. Source: AAP / JAMES ROSS/AAPIMAGE
Nesta conversa com a SBS em Português, ela afirma ter sido maltratada pelos policiais, e, na prisão, caiu em depressão e passou meses na ala psiquiátrica. Também conta como tinha pavor das outras detentas, mas, com a ajuda de uma outra brasileira, presa por um esquema similar, a fez encarar melhor os anos que esteve na cadeia.
Veja os principais trechos da entrevista com Eliane, que falou conosco do Brasil.

SBS em Português: Por que você aceitou compartilhar sua história?
Eu faço isso para que outras pessoas não façam o mesmo que eu fiz.
Falo para ajudar as pessoas quando tiverem momentos terríveis na vida delas, como eu tive, e não buscar a saída que eu busquei, porque meu prejuízo foi bem grande. O emocional e o material.
Eliane Bastos
Eu vim para a Austrália há 5 anos, em 2019. Eu estava passando por um momento muito crítico, meu marido estava preso. Eu nunca fiz nada de errado na vida, trabalhava como auxiliar de enfermagem. Tenho dois filhos.
A prisoner is led by handcuffs
"Quando meu marido foi preso, meu mundo desabou. Tudo ficou nas minhas costas, aluguel, despesa, advogado, e eu trabalhava de noite e não tava dando conta de nada," recorda Eliane Source: AAP
Foi quando uma pessoa que se disse 'amiga' me fez uma proposta para ir para a Austrália para resolver este problema. E eu, bem ingênua, achando que iria dar tudo certo e que eu ia ganhar o dinheiro vai comprar minha casa e que tudo ficaria um mar de rosas.
Eu disse ok, vou fazer isso uma única vez, levar droga para Austrália. Realmente agora eu posso dizer que eu estava doente mentalmente, totalmente desequilibrada e fiz essa loucura.
Eliane Bastos
SBS em Português: E achou que era uma saída fácil para seus problemas. O marido na prisão, você trabalhando, com dívidas, crianças pra cuidar...
Sim. Essa pessoa disse que iria dar certo, 'não tem como dar errado', história, né? E eu caí feito... Fui uma vítima em potencial pela fase que eu estava passando. Essa pessoa me viu, e eu fui uma vítima certinha.

SBS em Português: Você chegou na Austrália em 2019. Como foi pega?
Já fui pega no aeroporto. Inclusive tem a minha documentação, estava errada, quem preparou a minha documentação já tinha cometido erros.

SBS em Português: Tinha um problema na sua documentação. Se você tivesse sem droga, você ia ser parada.
Sim, isso mesmo, porque a minha documentação dizia que meu destino era Sydney e eu estava indo para Melbourne. Um mês depois apareceu uma outra brasileira também com os documentos dela, mas com o meu nome (!) e eu já estava presa.
Melbourne International Airport
"No aeroporto de Melbourne, me colocaram numa salinha e chamaram uma intérprete, começaram a fazer um monte de pergunta," diz Eliane Source: Flickr
SBS em Português: Como foi no aeroporto?
Eu não sabia o inglês. Só o inglês básico que se aprende aqui no Brasil, né? Aí começaram a falar comigo e eu não estava entendendo nada.

Imagina... naquela hora meu mundo desabou, né? Eles pegaram as malas, tiraram toda a roupa, escanearam a mala e lá viram que tinha droga, destruíram a bolsa.

SBS em Português: Quantos quilos?
Tinha 1 kg na minha bolsa. Cocaína. Eram duas malas bem grandes, eles só botaram um quilo.

Fizeram todo um terrorismo emocional. Parece que você é a pior pessoa do mundo, ninguém nem sabe da sua história, nem sabe o porquê daquilo.

Como se eu não fosse nem um ser humano. Dali fui levada para delegacia, onde passei de novo por tudo aquilo, o interrogatório, e todo aquele processo. Daí eles pegaram as digitais e disseram realmente que eu estava presa.

No aeroporto, não. Não fui direto para a prisão porque fui para uma audiência com o juiz no centro de Melbourne, onde os juízes dão as sentenças. Daí me botaram dentro de um camburão, e eu nunca tinha andado de camburão na minha vida. Me algemaram.
Fui algemada no camburão. Daí os policiais tavam andando em alta velocidade e eu comecei a me de bater dentro do camburão, sabe? Quando eles abriram o camburão e me viram caída no chão, caíram na gargalhada.
Eliane Bastos
Police car
Camburão da polícia para transporte de presos na Austrália Source: AAP / AAP Image/Ben Macmahon
Quando chegamos e eles abriram o carro, eu estava toda machucada, pois me bati muito de um lado para o outro durante a viagem. Eles acharam aquilo muito engraçado e riram muito.

Não bastava tudo aquilo que eu estava passando. Foi muito hilário para eles.

Aí fiquei lá na salinha esperando por horas sem tomar banho, sem comer, até o outro dia para essa audiência onde o juiz decretou que eu fosse transferida para esse centro de recuperação, que é uma prisão. Eu fiquei lá um ano.

SBS em Português: Como foi sobreviver na penintenciária feminina, com algumas das criminosas mais perigosas do estado?
Lá eu encontrei muitos tipos de pessoas com muitos delitos, bem diferente de mim, mas em si engloba uma recuperação, eles são mais amenos.

Mas ali me oferecem estudo, assistência médica, dentista. Eu fiquei assustada, mas não tem nada a ver com o Brasil.

O meu maior pavor era estar dentro de uma cadeia igual a do Brasil. Eu sabia que se fosse igual ao Brasil, eu não ia durar muito. Por que o Brasil é desumano nas prisões, né?
Prison
"Eu estava muito assustada. Me levaram para o alojamento, que era uma coisa provisória, e depois iriam me colocar onde eu iria ficar mesmo." Source: AAP
SBS em Português: Como é que foi o seu primeiro dia lá?
Foi horrível, eu cheguei à noite, umas 7 horas. Eles só mandaram eu ir, tomar um banho, lavar minha cabeça, tirar toda minha roupa. Eles te dão uma outra roupa.

SBS em Português: Eles te trancaram com outras mulheres ou você estava sozinha?
Era uma cela individual, mas junto com monte de mulheres. É um alojamento onde à noite é tudo trancado. Fica na tua cela individual, mas durante o dia, você compartilha um espaço físico juntos na cozinha.
Era uma prisão enorme. Eu via as detentas andando, conversando, brincando. Depois eu vi a razão disso. Porque tem que achar forças para aguentar aquilo. Então era talvez das amizades e tentar ocupar a cabeça de uma outra forma.
Eliane
SBS em Português: Como era o dia-a-dia?
Depois do choque inicial, eu decaí muito. Sem meus filhos, sem nada, sem saber o que estava acontecendo no Brasil. Entrei em depressão profunda, eu não comia, não dormia e aquilo começou a chamar a atenção deles.

Começaram a ficar preocupados. Vinham e tentavam me puxar para fora da cela, aí eu não ia, só ficava deitada, chorando. Chamaram um policial brasileiro para conversar comigo. Ele me dizia 'porque se meter com esse tipo de coisa, como é que fizeste isso?'

Eu não falava, eu não conseguia botar para fora, só sabia chorar. Eu me isolei no mundo dentro de mim e não deixava ninguém passar.
Eu fui me fechando, me deprimindo mais, ao ponto que eles me botaram numa aula psiquiátrica que tem dentro deste complexo.
Eliane Bastos
Lá um psiquiatra atestou que eu tinha perdido a vontade de viver, que eu tava entregue. Então eu passei 6 meses lá dentro e eu tentei matar... foi horrível.
Dame Phyllis Frost Centre
Imagem aérea da penitenciária Dame Phyllis Frost Centre, onde Eliane cumpriu pena

SBS em Português: Te mandaram para o hospital?
Cuidaram de mim. Aí que a tensão ficou ainda mais em cima de mim, porque aí eu fiquei seis meses nessa ala psiquiátrica, com acompanhamento de psicólogo, psiquiatra, uma terapia. Eu fui para corte bem nessa época que eu tava nesse desastre emocional. Naquele dia me deram a sentença: quatro anos. Foi por isso que eu me desequilibrei totalmente. Eu não entendia.
Pela minha história, eu achei aquilo tudo uma crueldade.

SBS em Português: Porque sua história é uma história sem antecedentes criminais, é isso?
Isso, nunca. Deu para ver que foram 'eles' que fizeram tudo aquilo comigo, documentação errada. Viram que eu era uma vítima.

Conversando com as meninas, que daí eu já estava aprendendo inglês, me deparei com pessoas tem um histórico de tráfico de 14 kg... a mesma pena que eu! Cheguei para minha advogada, precisa rever essa minha questão aí, porque eu não tô entendendo.

Como assim ela traz 14 kg no container do Canadá, e eu numa história que deu pra ver que eu era totalmente uma vítima, nunca tive antecedentes criminais no Brasil, e ganhei quatro anos. Como assim? Disse que era melhor eu aceitar bem assim, porque o juiz se sentiu ofendido de aumentar ainda mais a pena.

SBS em Português: Então você já tinha cumprido um e eles sentenciaram você a quatro. Faltou mais três. Depois da sentença, como é que você voltou para sua cela? Como estava se sentindo?
Me senti um lixo, pra falar a verdade. Nunca pensei em ficar quatro anos longe dos meus filhos. Continuei na ala psiquiátrica, porque eles estavam com muito medo, como é que eu ia me ajustar a tudo já eu tava totalmente desequilibrada.

Eles tomaram mais atenção comigo até uma hora o psiquiatra achou que tava na hora de eu entrar para o convívio, que eu tinha que seguir, tinha mais três anos.
hospital ward
"Fiquei seis meses na ala psiquiátrica, depois me mandaram para o 'convívio'" Credit: Peter Byrne/PA/Alamy/AAP Image
SBS em Português: O convívio é o convívio com outras mulheres, aonde todas ficam?
Isso. A tal brasileira é que entrou no país com eu nome e também foi pega com droga, foi essencial, porque ela sabia muito inglês e começou a me mostrar os caminhos dizendo que eu tinha que trabalhar, estudar. Começou a me apresentar as meninas, mas tudo eu tinha medo. Eu era muito apavorada.

SBS em Português: Essa brasileira veio para a Austrália com o seu nome depois que você veio?
Depois de um mês que eu estava presa, uma pessoa chegou no aeroporto querendo entrar em Melbourne com o meu nome. E eu já estava presa!

SBS em Português: E ela estava com drogas?
Ela estava com drogas, tinha dois quilos e pouco.

SBS em Português: Você sentia medo das outras detentas?
Medo não, estava apavorada.
(As outras detentas) falavam comigo e eu não respondia. Me olhavam de cara feia, não tá respondendo por quê? Eu não sabia o que falar, eu não tinha o que falar.
Eliane Bastos.
Essa brasileira vivia grudada em mim, muitas vezes ela dizia, não, ela não sabe inglês, para terem paciência comigo. Mas ela explicando ou não, eu era apavorada com tudo.
(Versão online: Fernando Vives)

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