Brasileira perde a audição de um ouvido após erro médico na Austrália

Adriana Buzzoni

"É muito injusto o fato de uma deficiência física ou mental ser critério de recusa do visto temporário ou permanente, porque ninguém escolhe ou deseja ser deficiente", diz Adriana Buzzoni.

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Other ways to listen

Adriana Buzzoni ficou surda permanentemente do ouvido esquerdo em 2011, após um médico de Sydney receitá-la o uso de um antibiótico tóxico para o nervo auditivo. No mesmo dia, ela recebeu a notícia de que a sua residência permanente havia sido aprovada. Em entrevista para a SBS em Português, ela nos conta como enfrentou o drama e organizou um grupo de apoio para brasileiros surdos unilaterais no país.


A Adriana, que nasceu na cidade de São Paulo e se mudou para a Austrália em 2007, decidiu passar um dia na praia com o seu marido, que na época era o seu namorado, para aproveitarem o verão de janeiro de 2011 em Sydney, onde vivem. “Mas, para o meu azar, o que era pra ser um mergulho gostoso, acabou se transformando num pesadelo”, conta ela que, ao ser atingida por um onda que perfurou o seu tímpano, teve que correr para o atendimento médico que mudaria a sua vida para sempre - com uma semana de uso de um antibiótico prescrito erroneamente poi um médico, ela perdeu totalmente a audição do seu ouvido esquerdo. Após anos de terapia, audiometrias, ressonância magnética e a tentativa de diferentes aparelhos auditivos, a Adriana finalmente passou por um cirurgia para um implante coclear que a ajudou a passar a ouvir parcialmente com a ajuda de um aparelho.
Adriana Buzzoni
Adriana Buzzoni, de 40 anos: "Graças a Deus, e a mim, nunca me faltaram oportunidades de trabalho por conta da minha deficiência. E eu nunca me senti discriminada por ser surda. Hoje eu vejo a vida como um copo meio cheio".
Segundo a advogada e agente de imigração Bianca Chisari, “Ter uma condição médica nunca impede alguém de solicitar um visto, mas pode impedir que um visto seja concedido. Não existe uma lista de condições médicas que garanta a recusa do visto, mas certamente há circunstâncias em que as condições de saúde podem impedir uma pessoa de obter um visto permanente . É importante notar que vistos diferentes têm critérios de saúde diferentes. Para alguém que está preocupado com a forma como a sua condição médica pode afetar um futuro pedido de visto, vale a pena procurar aconselhamento profissional; no entanto, deve ter em atenção que nenhum profissional de migração pode garantir que sua condição irá ou não desencadear a necessidade de uma dispensa de saúde ou que uma dispensa de saúde será ou não concedida”.

Leia abaixo o depoimento de Adriana Buzzoni à SBS em Português.

Um dia na praia seguido de um erro médico mudou a minha vida 

Num dia de verão, em Janeiro de 2011, o meu marido e eu decidimos passar o dia na praia aqui em Sydney. Estava um dia muito quente e, depois de tomarmos sol, fomos dar um mergulho no mar para nos refrescar.

Mas, para o meu azar, o que era pra ser um mergulho gostoso, acabou se transformando num pesadelo..
Eu vi a onda vindo, fui me virar e a onda me atingiu com tudo ouvido e perfurou o meu tímpano. A gente teve que sair da praia correndo para ir num médico para ver o que havia acontecido
Adriana Buzzoni.
Chegando lá, o GP (sigla em inglês para 'general practicer', o clínico-geral) para me receitou umas gotinhas para “ajudar a fechar” o meu o tímpano. Mas o que eu mal sabia que essas gotinhas eram, na verdade, um poderoso antibiótico ototóxico, que é tóxico para o nervo auditivo, ele danificou permanentemente as células siliadas da minha cóclea, que é o nervo auditivo. E com apenas uma semana de uso deste antibiótico, eu já estava completamente surda do ouvido esquerdo. Foi assim que eu descobri que estava surda, pois estava vindo uma ambulância, eu estava atravessando a rua, eu olhei para o lado direito e ela veio do lado esquerdo e quase me atropelou. Aí eu falei “Gente, o que está acontecendo?”.

Procurando por um especialista: Perda auditiva unilateral profunda permanente 

Eu procurei um especialista e, chegando no otorrino (otorrinolaringologista, médico especialista em ouvido, entre outros), fiz várias audiometrias e uma ressonância magnética, e ele me deu o diagnóstico final - perda auditiva unilateral neurossensorial profunda permanente. Quando ele me deu este diagnóstico, o médico disse que era irreversível e que não havia mais nada que eu pudesse fazer. Foi aí que eu me desesperei e chorei muito. Eu não estava esperando por esta notícia, pois eu imaginei que seria uma perda auditiva temporária. Eu achei que a minha audição do ouvido esquerdo iria voltar, mas não voltou.

Me adaptando à deficiência e passando a ver o lado positivo da vida

Eu fiquei muito triste. Comecei a ficar com depressão. Mas na mesma semana que eu fiquei surda, eu assisti um episódio no programa Bondi Rescue que marcou a minha vida para sempre. Nesse episódio, um dançarino brasileiro sofreu uma lesão medular na praia e ficou tetraplégico. Ele estava mergulhando, pegando jacaré lá na praia de Bondi, e bateu a cabeça num banco de areia e quebrou o pescoço. E isso me fez ver que perder a audição de apenas um ouvido era algo tão pequeno perto de uma lesão medular, que eu passei a enxergar a vida com outros olhos - eu agradeci a Deus por ter poupado o meu ouvido direito.

Foi aí então que eu levantei a cabeça, parei de sentir piedade de mim mesma, sacudi a poeira e partir para os possíveis tratamentos que poderiam me ajudar a ter a minha vida de volta. Hoje em dia eu sou muito bem resolvida e em paz com a minha surdez.
Graças a Deus, e a mim, nunca me faltaram oportunidades de trabalho por conta da minha deficiência. E eu nunca me senti discriminada por ser surda. Hoje eu vejo a vida como um copo meio cheio
Adriana Buzzoni.
Eu não sou surda, eu sou meio surda. O meu lema agora é: “eu quero, eu posso, eu consigo!”. E essa é a força propulsora que me impulsiona a correr atrás de tudo o que eu quero.

Diagnóstico de surdez no mesmo dia que a minha residência permanente foi aprovada

Eu dei uma sorte muito grande, porque eu fiquei surda quando eu já tinha aplicado para o processo de PR (residência permanente) e, assim que eu recebi o diagnóstico final de que eu estava surda permanentemente, foi o mesmo dia que a minha PR saiu. Então, foi uma mistura de sentimentos - uma felicidade por ter pego a PR, mas ao mesmo tempo a tristeza por saber que eu tava surda permanentemente. E foi assim, eu dei essa sorte. E depois, quando eu apliquei para cidadania, eu não tive que fazer exame médico e também não me perguntaram se eu tinha alguma deficiência.

Fiz meses de terapia para aceitar o que havia acontecido comigo

Quando eu perdi a audição de um ouvido foi uma mistura de sentimentos tão grande. Eu fiquei com muita raiva do médico, pois eu nunca imaginei que um médico fosse capaz de prescrever um remédio que faria exatamente o contrário do que ele se propunha a fazer. Eu pensava assim, “como ele pode fazer isso comigo? Será que ele faria isso com a filha dele?”. Mas, ao mesmo tempo, tinha um sentimento de incapacidade, de tristeza, de incompreensão, e eu sentia muita culpa.
Eu me culpei muito, por muitos anos, por não ter lido a bula daquele antibiótico antes de usá-lo. Foram meses e meses de terapia para eu conseguir aceitar o que aconteceu e me perdoar.
Adriana Buzzoni.
O processo de testar dois aparelhos auditivos

A primeira linha de tratamento foi com os corticoides, para tentar restaurar as células do nervo auditivo, conhecidas como ciliadas, mas, infelizmente, não deu. Depois disso, eu tentei o meu primeiro aparelho auditivo, cujo nome é Phonak Bio Cros, que transfere o som do lado surdo para o ouvido bom através de ondas FM. Mas este aparelho fica dentro do ouvido e ele bloqueava o meu ouvido bom e, por isso, eu não me adaptei, porque ele era bem desconfortável e aumentava muito a produção de cera no ouvido. E além disso, quando eu mastigava, parecia que eu tinha um chiclete dentro do meu ouvido e o som ficava bem estranho. Eu não me adaptei e parti para o próximo.

Foi aí que eu também testei o BAHA (Bone Anchored Hearing Aid), um aparelho auditivo de condução óssea. Eu usei ele com uma faixa na cabeça, pois o normal dele é colocar tipo um parafuso no crânio, com uma osseointegração, que você consegue colocar ou tirar ele do seu ouvido sempre que necessário. Mas como eu estava apenas testando o aparelho antes de fazer a cirurgia, eu acabei o usando apenas com uma faixa na cabeça. Ele é ótimo. A qualidade sonora é incrível, mas no meu caso, ele apenas transferia o som do ouvido direito saudável para o ouvido esquerdo que é surdo. Então, você não está na verdade usando aquele ouvido que “morreu”. Então, ele não me ajudava com a reverberação para eu saber me guiar pelo som, pois todos os sons para mim vinham do lado direito. Por exemplo, se tivesse dois elevadores, e o elevador esquerdo abrisse, eu ia para o lado direito.

Então, quando você tem uma audição mono, vinda apenas de um ouvido, os sons vêm todos juntos e misturados, você não consegue selecionar o que deseja ouvir. Então era muito difícil, aquilo me causava um cansaço e fadiga mental muito grande. Então, eu decidi que este aparelho também não servia para mim, pois eu estava me afastando de situações barulhentas e estava apenas querendo ficar em lugares isolados e em silêncio no meu canto, e não estava legal para a minha vida, pois estava afetando muito a minha vida social.

A alegria de finalmente encontrar um aparelho que me fez ouvir novamente após uma cirurgia

Mas depois de dois anos e meio de ter pedido a audição de um ouvido, eu resolvi dar uma chance para o implante coclear através de uma cirurgia. Este era o único tratamento que se propunha a restaurar a audição do meu ouvido perdido, fazendo reviver o nervo auditivo que estava até então tido como morto. Então, eu tomei coragem e fiz a cirurgia. Depois de um mês após o implante cirúrgico, eu fiz os mapeamentos auditivos e a minha audição finalmente foi ativada. E esse foi um sentimento muito legal. Essa sensação de poder ouvir de novo. É como se eu tivesse míope e colocasse os óculos pela primeira vez. Tudo ficou tão claro! E somente aí eu percebi o quanto antes eu estava aumentando o volume da TV, ou ouvindo música num volume muito alto no carro. Depois desta cirurgia, tudo ficou mais claro eu finalmente conseguia dar atenção quando alguém estava falando comigo e focar naquela conversação. Esta cirurgia foi uma experiência "life changing", pois mudou a minha vida para sempre.

O meu TCC do passado previu o futuro - O uso de próteses pelos seres humanos

Atualmente, a minha audição não é perfeita, pois eu percebo que o som do ouvido esquerdo é muito metalizado, parece uma voz de robozinho. Mas quando eu estou ouvindo naturalmente com o meu implante coclear e o meu ouvido bom, com os dois juntos, eu não percebo este som metalizado, porque o meu cérebro já consegue processar o som vindo dos dois ouvidos e eu consigo ouvir naturalmente.

É engraçado, o meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) na faculdade era sobre próteses, e como as próteses transformavam o ser humano num ser biônico que ia além das suas capacidades naturais. Então, a gente iria além dos limites do corpo com a ajuda das próteses biônicas.

Eu processei judicialmente o médico que me fez perder a audição

Depois de me dar conta de que a minha surdez era permanente e irreversível, eu resolvi me cercar de um time muito bom de três profissionais: um otorrinolaringologista, que era o Papa dos Ouvidos e eu tive muita sorte de achar um médico tão bom; um psicólogo e um advogado. E foi aí que eu consegui juntar forças para começar a cogitar a possibilidade de usar um aparelho auditivo e de lutar pelos meus direitos. E, eu não só pensei em processar, como eu realmente processei o médico que fez isso comigo.
O processo correu em segredo de justiça, então infelizmente eu não posso dar maiores detalhes sobre este caso, mas o resultado foi positivo
Acdriana Buzzoni.
Foram três anos de batalha na justiça, mas eu obtive uma decisão judicial favorável.

Como a Austrália lida com pessoas com deficiência - cidadãos x imigrantes
Eu acho que o capacitismo velado permeia a nossa sociedade. É muito injusto o fato de uma deficiência física ou mental ser critério de recusa do visto temporário ou permanente, porque ninguém escolhe ou deseja ser deficiente.
Adriana Buzzoni.
A Austrália se orgulha de ser um país justo para todos e este valor está presente inclusive no hino nacional. Mas, quando se trata de um imigrante, a história é totalmente diferente. Então, além de ter que lidar com toda a carga emocional e os desafios impostos por uma deficiência de nascença ou adquirira, ainda temos que lidar com a incerteza e com a possibilidade de um resultado negativo na aplicação do visto. Isso é muito desafiador e muito triste.

Eu acho que, antes do visto ser negado por conta de uma deficiência, o governo deveria por na balança o quanto aquela pessoa contribui, apesar de sua deficiência, e o quanto aquela deficiência requer de cuidados e gastos. Se o resultado for positivo, não há motivo para se recusar o visto, porque esta é uma pessoa que vai contribuir para a sociedade. Mas, além disso, eu acredito que deveria ter uma parcela de vistos mais filantrópicos, às pessoas que também precisam de cuidados médicos, que têm alguma deficiência ou que tem um caso que requer uma ajuda mais especializada.

Com isso dito, eu tento ver o lado positivo também. Pelo menos nas grandes cidades, como em Sydney, que é onde eu moro, a gente percebe que há faixas em alto relevo para cegos nas ruas e nas estações de trem. Também há os alertas sonoros nos faróis. As calçadas com rampas para cadeirantes. E eu sempre vejo pessoas com cão guia no transporte público e nos aeroportos. Todos os canais de TV tem Closed Captioning (CC). Resumidamente, é claro que sempre há espaço para melhorar. Mas, o pouco que temos aqui, em relação ao Brasil, já é muito.

Vivendo como surdo unilateral na Austrália x no Brasil

Os surdos unilaterais no Brasil têm que entrar na justiça e brigar com o plano de saúde para eles conseguirem o implante coclear - seja pelo plano de saúde ou pelo SUS, porque eles só consideram como deficiência no Brasil a surdez bilateral e não a unilateral. Então, assim, o Brasil está muito atrasado em relação a isso.

O implante coclear foi inventado por um australiano. O pai dele era surdo e ele falou “ah, eu quero ajudar meu pai”, e ele acabou desenvolvendo o implante coclear. E foi na faculdade de Perth, cujo chefe de departamento é um brasileiro, eu não sei o nome dele, que ele começou a indicar o implante coclear para surdos unilaterais. Então, neste ponto, eu tenho muita sorte de ter me mudado para a Austrália.

Um grupo no WhatsApp especificamente para surdos unilaterais na Austrália

A gente tem um grupo de WhatsApp para surdos unilaterais, então, eu deixo esse canal aberto para quem tiver curiosidade. É só me procurar, vem falar comigo, me chama no direct que eu te adiciono no nosso grupo de WhatsApp.

Esse grupo é somente para surdos unilaterais que querem fazer a cirurgia do implante coclear. O grupo é mais focado mesmo, porque tem informações sobre a legislação, a gente ensina como correr atrás do plano de saúde e como conseguir a cirurgia. Eu tinha a opção de fazer via Medicare, totalmente de graça, mas eu preferi fazer um plano de saúde e esperar 12 meses de carência.

Meu conselho para quem está conhecendo a minha história

Nesta vida, estamos em constante movimento, sempre nos adaptando às novas mudanças. Cada desafio nos empurra para fora da zona de conforto. E quanto mais nadamos em águas turbulentas, mais fortes nós ficamos. E com isso vamos evoluindo e nos tornando a melhor versão de nós mesmos. Às vezes, demoramos a entender o porquê daquilo ter acontecido com a gente, ou se é que existe um porquê.

Eu sou do tipo de pessoa guerreira, que usa as pedras do caminho para construir o meu castelo.

Então, o melhor conselho que eu tenho pra dar pra qualquer pessoa que esteja passando ou passou por uma situação parecida com a minha, é que não tenha medo de se reinventar. E claro, cerque-se de pessoas ao seu lado que possam te apoiar e te amar.

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