Dono de restaurante brasileiro que 'sobreviveu' a longo lockdown em Melbourne: "Mudamos o cardápio, o horário de funcionamento e a equipe inteira"

Gabriel e Gabriela

Gabriel e Gabriela Gebaile, donos de restaurante de comida brasileira que teve que passar por várias adaptações para 'sobreviver' a longo lockdown em Melbourne. Source: Supplied

Gabriel Gebaile, sócio da esposa Gabriela em restaurante de comida brasileira, conta que foram muitas as adaptações que tiveram que ser feitas no negócio para manter o funcionamento durante os 262 dias de confinamento em Melbourne desde o início da pandemia.


Melbourne foi a cidade que teve mais dias de lockdown durante a pandemia da COVID-19 no mundo. Foram 262 dias no total em seis confinamentos adotados pelo governo de Victoria desde o início da pandemia.

Durante esse período, muitos bares, restaurantes, cafeterias e pubs tiveram que fechar as portas, alguns em definitivo, enquanto outros se adaptaram à permissão de manter o negócio funcionando, oferecendo apenas comida para viagem ou para entrega, sem poder receber clientes para consumir dentro do estabelecimento.

O restaurante brasileiro Bossa Nova se manteve em funcionamento durante todo esse tempo, mas passou por várias mudanças e adaptações.

Gabriel Gebaile, dono do restaurante junto com a esposa Gabriela, diz que o começo do negócio, desde que inaugurou, em agosto de 2019, até o início da pandemia, foi de algumas dificuldades normais a um negócio pequeno, familiar, de imigrantes.

“Em março de 2020 quando a gente estava começando a se estabilizar, conhecer melhor a nossa clientela, a nossa cozinha e começando a se sentir mais confortável para fazer mudanças, chegou a pandemia, o primeiro confinamento e tudo mudou.”  

Primeiro lockdown

Segundo Gabriel, eles receberam a notícia do primeiro confinamento como muitas outras pessoas, achando que aquilo, que nem se sabia ainda que era uma pandemia, passaria rapidamente, sem fazer ideia do que estava por vir. Ele lembra que quando o GP da Austrália de Fórmula 1 que seria realizado em Melbourne no dia 15 de março de 2020 foi cancelado pouco antes do início dos treinos livres, os moradores da cidade ficaram assustados com a magnitude do que estava acontecendo.

“Começaram a cancelar os eventos que estavam para acontecer naquele período e começou a se falar em lockdown quando ninguém ainda sabia exatamente o que era o confinamento. Essa notícia assustou um pouco.”

Apesar disso, Gabriel destaca que talvez tenha sido mais fácil lidar com esse primeiro lockdown porque foi na Austrália inteira. “Estava tudo mundo na mesma. Já nos períodos de confinamento seguintes, realizados apenas em Melbourne, eu acredito que tenha sido mais difícil para o pessoal daqui (da cidade)”.
Estava tudo mundo na mesma (no primeiro lockdown no país inteiro). Já nos confinamentos seguintes, realizados apenas em Melbourne, acho que foi mais difícil para o pessoal daqui.
Adaptações

Sobre as adaptações pelas quais o restaurante teve que passar para ‘sobreviver’ aos períodos longos de lockdown, principalmente o segundo, adotado de julho a outubro de 2020, que durou 111 dias, Gabriel diz que o quadro de funcionários mudou totalmente, já que algumas pessoas voltaram para o Brasil e outras mudaram de cidade.

“Tivemos que trocar a equipe inteira quatro vezes desde o começo da pandemia. Algumas pessoas voltaram para o Brasil e outras se mudaram para outros estados dentro da Austrália por questões de visto ou para ‘fugir’ dos longos confinamentos em Melbourne”.
Trocamos a equipe inteira quatro vezes desde o começo da pandemia. Alguns voltaram para o Brasil e outros se mudaram de estado por causa de visto ou para ‘fugir’ dos confinamentos.
Mas Gabriel diz que as maiores adaptações vieram com o segundo lockdown, já que no primeiro ninguém sabia muito bem o que ia acontecer. Ele conta que no segundo período de confinamento eles sabiam que não conseguiriam manter o mesmo cardápio, já que as únicas possibilidades eram de comida para viagem ou para entrega.

“É muito difícil você comer uma feijoada ou um PF (prato feito) com um bife grande de picanha no parque, fazendo um piquenique. E se você pede por uma plataforma de entrega, chega muito tarde na sua casa. Foi aí que a gente começou com as adaptações.”
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A solução que Gabriel e Gabriela encontraram para oferecer comida mais barata e que funcionasse para viagem e entrega foi inserir marmitas no cardápio. Source: Supplied
Gabriel diz que a primeira adaptação feita no cardápio foi que o restaurante começou a oferecer marmitas, com refeições mais simples e baratas. “Muitos insumos estavam em falta nos mercados e produtos como arroz, feijão e carne tinham um limite de compra. A gente enquanto restaurante conseguia comprar com nossos fornecedores.”

A mudança deu certo. As pessoas começaram a encomendar grandes quantidades de marmitas e eles passaram a fazer entrega própria, com seus veículos particulares, tudo para diminuir os valores. “A gente rodou Melbourne inteira fazendo essas entregas. Foi uma das coisas que nos salvou no segundo lockdown”.

Queda nas vendas

Mesmo assim, Gabriel diz que houve queda nas vendas, até por ser um negócio novo, que ainda não tinha um cardápio ou clientela preparados para as mudanças que tiveram que ser feitas. “A gente era novo no bairro e na comunidade brasileira, então tivemos uma grande diminuição na nossa receita. Esses fatores nos levaram a nos adaptar”.
A gente era novo no bairro e na comunidade brasileira, então tivemos uma grande diminuição na nossa receita. Esses fatores nos levaram a nos adaptar.
Gabriel conta que um dos motivos para que eles adotassem um cardápio com opções mais baratas foi que a clientela do restaurante era formada, em sua maioria, por brasileiros com vistos temporários que perderam seus empregos ou tiveram diminuição de carga horária e não eram elegíveis aos auxílios financeiros oferecidos pelo governo.

“Passados uns dois meses de lockdown, a gente percebeu que muitos desses brasileiros que perderam seus empregos começaram a fazer comida brasileira em casa para vender, como marmitas e bolos. Os nossos clientes passaram a ser então nossos concorrentes.”
Muitos brasileiros que perderam seus empregos começaram a fazer comida em casa para vender, como marmitas e bolos. Os nossos clientes passaram a ser então nossos concorrentes.
No restaurante, segundo Gabriel, era impossível praticar os mesmos preços que as pessoas que cozinhavam em casa estavam cobrando porque os custos de manter o estabelecimento funcionando eram altos, com energia, aluguel, seguro, entre outras contas para pagar. Foi aí então que eles resolveram mudar mais uma vez o cardápio.

Mudanças no cardápio

Em reunião com os funcionários do restaurante, Gabriel e Gabriela tiveram então a ideia de oferecer pizza nos sabores e estilo brasileiro, já que eles mesmos sentiam falta da pizza brasileira. “E foi aí que a gente trocou todo o nosso cardápio mais uma vez e mudou o nosso horário de funcionamento.”
menu
O cardápio do restaurante teve que ser alterado mais de uma vez para se adaptar à restrição de oferecer comida apenas para viagem e entrega. Source: Supplied
“A gente reformulou tudo, dividiu a equipe em dois. Não precisamos demitir ninguém. Eu usei o meu carro, um funcionário vinha de moto, a gente alugava outro carro por aplicativo e fazia nosso próprio delivery. A pizza acabou sendo uma salvação para o lockdown”.
A gente mudou o horário de funcionamento, dividiu a equipe. Eu usei o meu carro, um funcionário vinha de moto, a gente alugava outro carro por aplicativo e fazia nosso próprio delivery.
Auxílios do governo

Sobre os auxílios financeiros oferecidos pelos governos federal e estadual, abatimento de taxas e desconto no aluguel do ponto, Gabriel disse que conseguiu receber um auxílio do governo federal, que foi um pagamento único oferecido a todo o tipo de negócio que estava em funcionamento há um determinado tempo. Eles seguiram algumas regras, apresentaram a documentação exigida e com o valor recebido compraram alguns fornos para assar as pizzas.

Já para um outro auxílio do governo que foi oferecido periodicamente durante o lockdown de 2020 para que as empresas mantivessem seu quadro de funcionários e evitassem demissões, o restaurante do Gabriel não era elegível, porque os trabalhadores tinham que ser residentes permanentes ou cidadãos, e os funcionários do restaurante dele estavam todos em vistos temporários.

“Foi difícil pra gente porque sobrevivemos ao segundo lockdown sem nenhuma ajuda do governo. A gente via alguns restaurantes próximos do nosso comprando novos equipamentos e móveis enquanto a gente trabalhava de 12 a 15 horas por dia para manter o negócio aberto”.
Sobrevivemos ao segundo lockdown sem ajuda do governo. A gente via restaurantes próximos comprando equipamentos enquanto trabalhávamos até 15 horas por dia para manter o negócio.
Em contrapartida, Gabriel diz que o dono do ponto comercial onde fica o restaurante foi bastante compreensivo, e depois de uma conversa em que explicaram que o restaurante não era elegível ao auxílio do governo, ele diminuiu o valor do aluguel do local pela metade por quase seis meses, o que, segundo Gabriel, ajudou bastante.   

Além disso, a prefeitura retirou por um período a exigência de algumas taxas mensais que teriam que ser pagas por eles, o que também ajudou a manter o restaurante em funcionamento. E como o negócio fica perto do centro da cidade, as campanhas feitas para atrair consumidores ao centro chegaram até eles. No verão de 2020 para 2021, eles puderam colocar mesas na calçada e receberam auxílio para a compra de equipamentos e móveis que viabilizassem que fosse montada a estrutura ao ar livre.

“Essa foi a segunda grande mudança que a gente fez no restaurante. A primeira a gente considera que foi oferecer pizza e a segunda, abrir o boteco à noite durante o verão. A gente mudou novamente o cardápio, o horário de funcionamento e contratou bastante gente. Nos reinventamos mais uma vez”.

Sexto lockdown

Perguntado sobre como foi a adaptação ao sexto lockdown adotado em Melbourne em agosto de 2021 depois da chegada da variante Delta ao estado, que durou 77 dias, teve limite de deslocamento e toque de recolher, Gabriel disse que foi mais difícil psicologicamente do que na parte prática.

“O quarto e o quinto lockdown adotados em Melbourne, que foram mais rápidos, foram mais difíceis na prática porque tínhamos que tirar as mesas, comprar embalagens de comida para viagem, ligar de novo para os aplicativos, replanejar e readaptar o cardápio para um curto período. Já o sexto foi um pouco mais desgastante mentalmente para todo mundo. Tanto para os clientes quanto pra gente.”

Gabriel disse que não esperava que o sexto lockdown fosse tão longo e tão cheio de restrições, o que os limitava a usar a criatividade com relação a mudanças no cardápio, por exemplo. Mesmo assim, eles adaptaram mais uma vez o menu e passaram a oferecer lanches e refeições rápidas, já que mesmo durante o período de confinamento era possível fazer piqueniques no parque com limites de pessoas.

Motivação

Perguntado sobre o que os manteve motivados a seguir com o restaurante em funcionamento mesmo diante de tantas dificuldades e necessidade de adaptações, Gabriel fala apesar de parecer clichê, foram os clientes que fizeram com que eles não desanimassem durante a pandemia e o longo período de lockdown. Ele diz que quando eles se sentiam cansados ou desmotivados, chegavam clientes que os agradeciam por estarem com o restaurante aberto oferecendo comida brasileira.

“A gente tem muito orgulho de não ter fechado nenhum dia e de não ter demitido ninguém. Teve redução de horas pra todo mundo, nós passamos por momentos difíceis, mas ver o sorriso de um cliente que ao comer um bolo de cenoura dizia que aquele bolo o fazia lembrar da sua mãe ou da sua avó era o que motivava bastante a gente”.
Ver o sorriso de um cliente que, ao comer um bolo de cenoura dizia que aquele bolo o fazia lembrar da sua mãe ou da sua avó, era o que motivava bastante a gente.
Sobre a volta das pessoas ao restaurante depois do fim do último lockdown, Gabriel diz que as pessoas tem ido bastante ao restaurante, mas que tem sido um pouco estranho porque diferente das outras vezes, agora o número de novos casos diários de COVID-19 no estado de Victoria continua alto, e as exigências de fazer check-in por aplicativos nos estabelecimentos comerciais e mostrar o comprovante de vacinação para poder entrar nos lugares tem tornado as coisas um pouco mais difíceis.

“Infelizmente a gente percebeu que teve uma perda muito grande da nossa comunidade brasileira em Melbourne. Muita gente se mudou. No segundo lockdown muitas pessoas voltaram para o Brasil, enquanto nesses últimos confimanentos o movimento de brasileiros que saíram daqui foi para ir para outras cidades e estados da Austrália”.
Infelizmente a gente percebeu que teve uma perda muito grande da nossa comunidade brasileira em Melbourne. Muita gente se mudou.
Por isso Gabriel diz que o perfil dos clientes mudou. Antes a clientela era formada 70% por brasileiros e agora são 50% brasileiros e 50% australianos ou pessoas de outros países. “Mas está muito legal poder receber as pessoas de novo no restaurante e voltar a explicar o que são os pratos para quem não conhece.”

Expectativa 

Sobre a expectativa para o futuro, com a chegada do verão, o alto índice de vacinação no estado e a reabertura das fronteiras do país para portadores de vistos temporários como estudantes internacionais, Gabriel diz que espera que não venha a acontecer um sétimo lockdown em Melbourne.

“Melbourne é uma cidade que recebe muitos turistas de toda a Austrália, então brasileiros que moram em outros estados vão poder vir pra cá e visitar o restaurante. A gente está muito ansioso para que as fronteiras reabram, que a gente possa visitar o Brasil, e que estudantes e turistas possam vir a Melbourne trazer vida à cidade de novo”.


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