Idealizadora da campanha 'Lembra de Casa', de doação de cestas básicas no Brasil: "Não acredito em caridade. Acredito em solidariedade. Quem nunca precisou de ajuda?"

Lembra de Casa

Parte dos voluntários da equipe da campanha 'Lembra de Casa', que em 2021, na segunda edição, quer oferecer 2 mil cestas básicas a famílias com fome no Brasil. Source: Supplied

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Other ways to listen

Emilie da Silva, brasileira que vive na Austrália há 16 anos, criou em 2020 a campanha de arrecadação de dinheiro para a compra de cestas básicas para famílias em situação de fome no Brasil. O objetivo da segunda edição este ano é contemplar 8 mil pessoas através de 13 projetos sociais, a maioria no Norte e Nordeste do país. "São pessoas com baixa escolaridade, afrodescendentes, mães solo, nas regiões onde a fome está mais concentrada"


No final de 2020 cerca de 116.8 milhões pessoas no Brasil, mais da metade da população do país, enfrentava algum nível de insegurança alimentar. A falta de acesso total a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, de forma regular, sem comprometer outras necessidades básicas como moradia por exemplo.

O dado é de uma pesquisa que foi realizada pela . O mesmo estudo mostrou que 9% da população brasileira, o equivalente a mais de 19 milhões de pessoas, enfrentava o nível mais alto de insegurança alimentar: a fome.

O IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, já tinha realizado uma pesquisa entre 2017 e 2018, ouvindo um número maior de pessoas, que apontou que 36,7% da população vivia insegurança alimentar e 4,6% estavam em situação de fome.

No ano passado teve início na Austrália a campanha 'Lembra de Casa', idealizada pela brasileira Emilie da Silva, que vive há 16 anos no país, para arrecadar fundos destinados à compra de cestas básicas levadas a famílias em situação de fome no Brasil às vésperas do Natal.

Mais de cinco mil pessoas tiveram acesso às 1.282 cestas básicas que foram compradas com os A$28 mil dólares arrecadados através de uma plataforma de crowdfunding. 

Neste ano de 2021, a campanha volta maior para sua segunda edição, e convida brasileiros expatriados não só na Austrália, mas no mundo inteiro a fazerem doações em dinheiro com o objetivo de contemplar duas mil famílias no Brasil através de 13 projetos sociais. 

Início

Emilie conta que a ideia de fazer a campanha em 2020 surgiu quando ela soube dos níveis da fome no Brasil, e como forma de agradecer pela cura do pai dela, que enfrentou uma doença grave no ano passado. "A ideia já estava no meu coração há muitos anos. Eu me juntei a um grupo de pessoas maravilhosas, todas voluntárias, e criamos o 'Lembra de Casa'. Alimentar diretamente cinco mil pessoas foi uma coisa linda."
Emilie da Silva
Emilie da Silva, brasileira que mora na Austrália há 16 anos, idealizou a campanha 'Lembra de Casa' em 2020, após o pai se curar de uma doença grave. Source: Supplied
Ao falar sobre os desafios da primeira edição da campanha, em 2020, Emilie destaca a escolha das ONGs e projetos sociais a serem contemplados, além da compra das cestas básicas e da logística da entrega, já que tudo é feito à distância, da Austrália, pois a campanha não terceiriza esse trabalho. 

"A escolha das organizações (cinco em 2020 e treze em 2021) se dá através dos mesmos índices da pesquisa da PENSSAN. Escolhemos aquelas que contemplam pessoas com baixa escolaridade, afrodescendentes e famílias com apenas uma renda, como mães solo. Também levamos em consideração a localização geográfica das organizações, já que a fome está mais concentrada nas regiões Norte e Nordeste do Brasil", explica Emilie.
Escolhemos ONGs que atendem pessoas com baixa escolaridade, afrodescendentes, mães solo, e onde a fome está mais concentrada, nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Funcionamento

A equipe de voluntários que integra a campanha é formada por 15 pessoas que desenvolvem as principais funções para fazer o projeto acontecer, e mais 30 pessoas que desenvolvem o trabalho de contato com as empresas e divulgação do 'Lembra de Casa' nas mídias sociais.

O contato com as ONGs é feito diariamente e os voluntários da campanha trabalham inclusive de madrugada, por causa da diferença de fuso horário entre Brasil e Austrália. Emilie diz que esse contato constante com as organizações é muito importante para ela e toda a equipe: "Essa é uma parte muito gostosa do projeto porque a gente se sente em casa, falando com nosso povo."
O contato também é feito diretamente da equipe de voluntários na Austrália com as empresas que fornecem as cestas básicas. "Nós não enviamos dinheiro ao Brasil. Para garantir que a doação de quem participa da campanha vire comida na mesa de quem precisa, compramos as cestas básicas por aqui, e elas são entregues diretamente às ONGs que fazem a distribuição para as famílias."
Para garantir que as doações virem comida na mesa de quem precisa, nós realizamos a compra das cestas básicas e elas são entregues diretamente às ONGs, que distribuem às famílias.
Transparência

O trabalho realizado pela 'Lembra de Casa' pode ser acompanhado, etapa por etapa, pelos doadores e interessados, através do site da plataforma de crowdfunding, pelo site da campanha e pelas redes sociais. 

Segundo Emilie, "a gente precisa mostrar que honra cada centavo doado para o projeto, e por isso a campanha é transparente de ponta a ponta. Nas mídias sociais, temos o controle financeiro do projeto do ano passado aberto. A entrega das cestas básicas em 2020 foi transmitida ao vivo. As pessoas que doaram A$25 conseguiram ver com seus próprios olhos para onde foi essa doação."
Nas mídias sociais, temos o controle financeiro aberto do projeto do ano passado. A entrega das cestas básicas em 2020 foi transmitida ao vivo.
Emilie reforça que a transparência é essencial para manter a seriedade do projeto e dar continuidade a ele nos próximos anos.
Entrega cestas
Registro da entrega de cestas básicas pela campanha 'Lembra de Casa' em 2020, em Belém do Pará. Source: Supplied
Sobre as cestas doadas às famílias, Emilie diz que pelo fato de comprarem de um ou dois fornecedores no máximo, é possível ganhar bastante em economia de escala, comprar um grande volume de cestas básicas a um valor que possibilita que as cestas venham com muitos alimentos, com 15 quilos cada uma, e que assim essas famílias tenham comida suficiente para duas semanas. 

Desafios

Entre os desafios citados por Emilie para a campanha deste ano, está o preço dos alimentos, bem mais alto do que em 2020. "A inflação no Brasil está de uma forma que a gente não esperava. Os fornecedores não estavam podendo garantir o valor da cesta básica porque, segundo eles, o valor da cesta estava aumentando semanalmente."
A inflação no Brasil está de uma forma que a gente não esperava. Os fornecedores não estavam podendo garantir o valor da cesta básica. Segundo eles, esse valor estava aumentando semanalmente.
Mas pelo fato de ter fechado com apenas um fornecedor um volume alto de cestas básicas, duas mil, Emilie disse que foi possível manter o valor de A$25 para cada cesta. Mesmo com o grande aumento em um ano também do valor do combustível, o que poderia afetar a entrega das cestas básicas caso o volume fosse menor. 

Como a campanha deste ano está sendo realizada no mundo inteiro, para aqueles que estão em outros países fora da Austrália e querem participar fazendo doações, o valor de A$25 é convertido para a moeda local. Segundo Emilie, há embaixadores do 'Lembra de Casa' em 12 países, o que facilita o funcionamento do projeto internacionalmente.
Valores

Emilie destaca que o valor de A$25 não é fixo. "Nós pedimos que as pessoas façam a doação que puderem fazer. Qualquer centavo ajuda. Mas se as pessoas conseguem doar A$25, elas estão impactando diretamente uma família de quatro pessoas."
Se as pessoas conseguem doar A$25, elas estão impactando diretamente uma família de quatro pessoas por duas semanas.
A doação pode ser feita através do , onde também é possível acompanhar toda a prestação de contas, o andamento do projeto e depois a entrega das cestas. Através do do 'Lembra de Casa' também são passadas informações detalhadas da campanha, e são transmitidas lives com os responsáveis pelas ONGs participantes. O prazo para doação vai até 28 de novembro. 

Sobre as transmissões ao vivo pelo Instagram, Emilie diz que "é uma delícia conhecer os heróis sem capa do Brasil que estão facilitando para a gente a entrega dessas cestas básicas. Dá uma real sensação de pertencimento."
Solidariedade

Emilie diz acreditar que 'a união faz a força', e que não existe ninguém que nunca precisou de ajuda, principalmente aqueles que, como ela, são imigrantes. "Quando precisamos, sempre tivemos alguém para nos ajudar. O 'Lembra de Casa' é uma lembrança ativa das nossas raízes. Uma oportunidade de exercer nossa gratidão, cidadania e humanidade nesse planeta." 

E completa: 'também é uma forma de levar esperança a essas famílias, que podem estar se sentindo esquecidas pelo governo ou pelas comunidades onde vivem. E para que tenhamos a esperança de que um dia não será mais necessário enviar comida ao Brasil. Não faz sentido a população do país que é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, passar fome."
O 'Lembra de Casa' é uma forma de levar esperança a essas famílias, que podem estar se sentindo esquecidas pelo governo ou pelas comunidades onde vivem.
Para Emilie, o 'Lembra de Casa' também é uma realização pessoal. Ela diz que é inspirada a todo o momento pelos outros voluntários e pelos integrantes das ONGs participantes. "Uma senhora que é presidente de uma organização no Amazonas, doou a própria casa para o projeto. Eu lido com pessoas inspiradoras do começo ao fim da campanha." 

E finaliza: "Eu não acredito em caridade pois tem uma conotação de poder. Acredito em solidariedade. Em alguns momentos estamos numa posição maior e podemos ajudar, em outros momentos estamos numa posição menor e somos ajudados." 


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