Brasileira de Sydney que morou no Afeganistão: "Eu nunca vi tanta garra e coragem como das mulheres afegãs"

Helena Passos

Helena Passos no helicóptero, saindo da embaixada dos EUA para o aeroporto de Cabul, retornando para casa após um ano no Afeganistão. Source: Supplied

Helena Passos viveu um ano em Cabul, onde trabalhou para o Departamento de Estado Americano. Por segurança, ela não podia circular pela cidade, mas conviveu com afegãs dentro da embaixada dos EUA e afirma: "elas corriam um risco enorme para estar ali trabalhando, mas queriam fazer a diferença no país"


Depois de duas décadas da guerra mais longa da história dos Estados Unidos, as tropas norte-americanas deixaram o Afeganistão, e rapidamente o grupo fundamentalista islâmico Talibã voltou ao poder com a retomada da capital Cabul no dia 15 de agosto deste ano. 

Desde então, muito se fala sobre o país da Ásia, nos mais diversos veículos de comunicação, alternativos ou de grandes grupos ao redor do mundo, e também nas redes sociais. Entre os temas tratados, o legado que os Estados Unidos poderiam ter deixado às novas gerações do país depois de 20 anos de ocupação, e o possível retrocesso na participação feminina na sociedade, com base no primeiro regime Talibã, entre 1996 e 2001. 

Naquele período, escolas para mulheres foram fechadas, elas eram impedidas de trabalhar, a não ser em funções que não podiam ser exercidas por homens, e meninas eram proibidas de sair de casa sem a companhia de um homem da família. 

Ao falar sobre esse retrocesso, a capixaba Helena Passos, gerente de personalização digital e marketing em Sydney, lamenta que exista a possibilidade de que isso volte a acontecer. Ela conheceu de perto e se impressionou com a garra e a coragem das mulheres afegãs. "Elas corriam um risco enorme para estar ali (na embaixada dos EUA em Cabul) trabalhando, mas queriam fazer a diferença no país. E mesmo agora, na situação em que o Afeganistão se encontra, eu vi que mulheres lideraram manifestações no país pela manutenção dos seus direitos".   

Helena deixou a carreira diplomática em 2015 para fazer MBA em Oxford, mas um ano antes, em 2014, ela foi para Cabul, onde trabalhou como Associada Consular na embaixada dos EUA no Afeganistão, pelo Departamento de Estado Americano. Ela precisava passar pela experiência de trabalhar em um local de alto risco para se desenvolver mais rapidamente na carreira.
Helena na base aérea
Helena na base militar, anexo à embaixada dos EUA em Cabul, indo para o aeroporto depois de um ano no Afeganistão. Source: Supplied
Antes de ir, ela passou por um curso obrigatório de segurança e sobrevivência com atividades que incluíam primeiros socorros, tiro, direção defensiva e evacuação de prédio invadido por terroristas. Além disso, ela estudou a fundo a história do Afeganistão. 

Foi durante esses estudos que Helena aprendeu com mais detalhes quem foram os Mujahideen, grupo islâmico que nos anos 1970 se juntou para defender o Afeganistão da invasão da União Soviética, e o Talibã, que surgiu no início da década de 1990 no Paquistão, após a retirada das tropas da União Soviética do Afeganistão, com promessas de restaurar a paz e a segurança na região. 

Helena diz que a atuação desses grupos extremistas no país gerou uma grande mudança na cultura do Afeganistão, onde até a década de 1960 as mulheres se vestiam como queriam e a sociedade era muito mais aberta. Ela ressalta que desde que os mujahideen e os talibãs surgiram, o tratamento opressor e a falta de liberdade das mulheres foi se incorporando à essa 'nova cultura'. 

Helena cita o exemplo de uma afegã que trabalhou com ela na embaixada dos EUA em Cabul que exercia um cargo de liderança, e que tinha homens entre os seus subordinados. "Ela tinha muita dificuldade de lidar com os homens que gerenciava, por questões culturais. É raro ver mulheres em posições de liderança no país", destaca Helena, e completa: "acontecimentos aparentemente simples como esse me chocavam, pois a nossa cultura é muito diferente da deles".
Ela (colega de trabalho afegã da embaixada dos EUA em Cabul) tinha muita dificuldade de lidar com os homens que gerenciava, por questões culturais. É raro ver mulheres em posições de liderança no país.
Sobre o contato com a cultura local, Helena circulou pela cidade de Cabul, de carro, uma única vez, assim que chegou ao Afeganistão. Ela foi escoltada pelas Forças Especiais do Serviço Militar Americano até o complexo da embaixada dos EUA, de onde só sairia poucas vezes de helicóptero, até o dia de deixar o país, um ano depois. Tudo por questão de segurança. 

Mas em um único "passeio" pela cidade, Helena pode observar que Cabul é pouco desenvolvida, bastante populosa, bem árida e montanhosa. "A sensação que eu tive foi de voltar muito no tempo. As casas são muito precárias. Há muita pobreza". 

Mesmo com todas as medidas de segurança tomadas, Helena disse que se sentiu ameaçada algumas vezes enquanto esteve em Cabul. Segundo ela, alarmes de bombas e de mísseis soavam o tempo todo. E apesar de todos ali terem sido treinados e orientados para lidar com situações mais extrema, as pessoas acabavam se acostumando e achando que era mais um alarme falso. Pouco tempo antes de ela chegar a Cabul, uma bomba tinha caído no setor de vistos da embaixada e vários afegãos perderam suas vidas por consequência disso. 

Sobre situações extremas, Helena diz que um dos fatos que mais marcou o período que ela passou no Afeganistão foi o assassinato de Farkhunda Malikzada, uma afegã de 27 anos que, como conta Helena, era muito religiosa e se deparou com um homem vendendo objetos religiosos falsificados em frente a uma mesquita. Ela pediu para que o homem não fizesse isso e ele começou a gritar dizendo que Farkhunda havia queimado o Corão, livro sagrado do islamismo. Um grupo de homens se juntou e começou a apedrejá-la até a morte, e ela ainda teve o corpo queimado em seguida. Helena diz que a polícia chegou a ir até o local mas não a defendeu.
O crime brutal cometido à luz do dia e muito próximo à embaixada dos EUA em Cabul, onde Helena estava naquele momento, gerou nela um sentimento de frustração e incapacidade, por não ter podido ajudar Farkhunda, a família dela, ou outras mulheres que sofrem atrocidades no Afeganistão, já que, segundo Helena, esse tipo de situação não é única, nem rara. É algo corriqueiro no Afeganistão. "O que senti naquele dia foi uma tristeza muito grande, que até hoje eu carrego comigo", confessou. 

Mas Helena também carrega boas lembranças do período que morou em Cabul, como as reuniões promovidas pela embaixada dos EUA entre funcionários estrangeiros e afegãos. "Nesses encontros eu tinha a oportunidade de conversar com os nativos do país e entender um pouco sobre a cultura e a vida deles".
Helena na embaixada
Helena, de vermelho, entre colegas de trabalho, usando roupas típicas do Afeganistão em uma festa na embaixada dos EUA em Cabul. Source: Supplied
Helena destaca que os afegãos não apoiam os talibãs e nem querem que eles andem armados por lá, instaurando o medo no país. Segundo ela, muitas pessoas que tiveram mais acesso à educação decidiram sair do Afeganistão para de fora tentar fazer alguma coisa pelo seu país. Mas também há aqueles, incluindo mulheres, que optaram por ficar lá para trabalhar e lutar por um país melhor para todos. Só que não depende apenas da vontade deles. Na situação em que o Afeganistão se encontra hoje muita gente teve que sair das suas casas e não tem nem o que comer. 

Para Helena, os Estados Unidos poderiam ter deixado um legado melhor para os afegãos depois desses 20 anos de ocupação. "Deveria ter havido um plano estratégico de execução da retirada das tropas muito mais bem preparado, já que era sabido que a retirada seria inevitável, para garantir mais direitos às mulheres e mais acesso dos afegãos à educação. E isso infelizmente não foi feito".
Deveria ter havido um plano estratégico de execução da retirada das tropas (dos EUA) muito mais bem preparado, já que era sabido que a retirada seria inevitável, para garantir mais direitos às mulheres afegãs.
Helena lembra que houve muitos avanços na educação para as mulheres durante a ocupação dos Estados Unidos no Afeganistão, apesar de 80% da população feminina do país ainda não ser alfabetizada. Também houve avanços no campo profissional. Ela lembra que quando estava em Cabul, teve o prazer de entregar uma premiação para a primeira piloto feminina da Força Aérea Afegã, Niloofar Rahmani, que em 2018 buscou asilo nos EUA depois de receber ameaças em Cabul.
Helena lamenta que apenas durante o governo de Barack Obama, quando Hillary Clinton era Secretária de Estado dos EUA, tenha havido uma ação no sentido de negociar com o governo afegão melhores condições e direitos à população do país, principalmente às mulheres. "No governo de Donald Trump isso foi deixado totalmente de lado, e agora, no governo de Joe Biden ainda não se falou sobre o assunto".

Ela diz que "mesmo com a retirada das tropas, o governo norte-americano ainda tem um grande poder de negociação com o Afeganistão porque ainda auxilia economicamente o país. Por isso, pode, e deve, pela responsabilidade ética que tem com o Afeganistão e o povo afegão, exigir que principalmente as mulheres tenham acesso aos direitos humanos". 

Sobre a forma como cada um de nós pode ajudar o povo afegão, Helena diz que existem diversas formas. Uma delas é votando em políticos que priorizem a ajuda a refugiados e a países que estejam passando por guerras e crises humanitárias. Outra forma é colaborando com o trabalho de organizações e instituições que atuam no país, levando comida e itens básicos à população, oferecendo segurança às mulheres, ajuda e asilo àqueles que querem deixar o Afeganistão. 


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