Mãe solo imigrante na Austrália: Julia Harger abriu o próprio negócio para poder levar filha ao trabalho quando precisa

Julia e Domi

Julia é mãe solo de Dominique. Ela diz que a relação das duas é muito próxima pois elas só tem uma à outra no convívio diário. Source: Supplied

A tatuadora brasileira Julia Harger, de 35 anos, mãe de Dominique, de 6, mora na Austrália há 12 anos. Para ela, um dos maiores desafios da maternidade solo fora do país de origem é privar a criança do convívio com a família.


Uma em cada sete famílias na Austrália tem na sua formação mães ou pais solo. 61% deles trabalham fora de casa e mais de 79% dessas famílias são compostas por mulheres e seus dependentes. Os dados são de uma pesquisa realizada em 2020 pelo Instituto Australiano de Estatísticas. 

A tatuadora brasileira Julia Harger, de 35 anos, mãe da Dominique, de 6, mora na Austrália há 12 anos. Ela diz que um dos motivos que a levou a montar seu próprio negócio, um estúdio de tatuagem em Melbourne, foi a liberdade de poder levar a filha para o local trabalho quando precisa, se não tem com quem deixá-la ou quando ela sai da escola mais cedo.  

Esse é apenas um dos desafios que as mães solo ao redor do mundo enfrentam: não ter com quem dividir os cuidados e a criação de uma criança. 

Pode haver ainda a necessidade de arcar com os custos de casa sozinha, planejar uma rotina que funcione para as duas partes, com a organização dos horários de todas as atividades, incluindo o preparo de refeições, a limpeza da casa e várias outras tarefas domésticas.

Questões mais complexas também podem pesar sobre essas mães, como a anulação de conflitos emocionais pessoais que precisariam ser resolvidos, para evitar que sejam transmitidos aos seus dependentes.  

Para as mães solo imigrantes, existem ainda mais fatores que podem ser bem difíceis de lidar, como a distância da família, a falta de uma rede de apoio, e até a saudade das pessoas, do país e da cultura de origem, que podem agravar a saúde mental de mulheres já tão sobrecarregadas.  

A rotina da Julia começa cedo, às 6h da manhã. Até as 7h30 ela tem o que considera o “momento de ouro” do seu dia, quando está sozinha e pode desenvolver atividades voltadas ao seu trabalho que requerem concentração, como responder e-mails e criar desenhos para tatuar os clientes. Depois disso, começa a correria do dia-a-dia. Se arrumar, acordar a filha, tomar café, preparar a lancheira e levar a Dominique à escola. De lá, Julia segue de bicicleta para o trabalho.
Julia Harger
Julia Harger, tatuadora e mãe solo, considera as primeiras horas do dia o seu "momento de ouro", quando tem tempo para si e para atividades de trabalho. Source: Supplied
O final do dia pode variar um pouco. Quando consegue, Julia busca a Domi na escola às 15h30, horário regular de término das aulas. Mas às vezes é preciso recorrer ao horário estendido, que é pago, por ser um serviço privado, e então a Domi pode ficar até as 18h, o que possibilita que a Julia trabalhe um pouco mais ou resolva outras coisas antes de buscar a filha para ir para casa.

À noite é hora de seguir mais um ritual: jantar, fazer as tarefas da escola, assistir televisão ou fazer alguma atividade de lazer, tomar banho e ir para a cama. O dia da filha acaba aí mas o da mãe solo pode ir mais longe, com a arrumação da casa ou, quem sabe, um momento para relaxar.

Segundo Julia, ela e a Dominique já estão adaptadas a essa rotina regrada, e ela destaca que as crianças costumam ter mais facilidade de adaptação do que os adultos. Mas lembra que quando resolveu passar um ano com a filha no Brasil, em 2019, a volta foi mais difícil para a Domi do que para ela. “A Domi ficou com saudade da família e de falar português, segundo ela”, destaca Julia.
O que levou a ex-designer gráfica a decidir passar esse período no Brasil foi a opção pela mudança de carreira e a necessidade de ter uma rede de apoio nos cuidados com a Dominique. Assim ela poderia se dedicar a aprender um novo ofício, o que exigiu tempo e investimento financeiro.

Julia também diz que desde que a filha nasceu, ela tinha na cabeça o questionamento de como seria criar a Domi junto da família. Ela quis então viver essa experiência. Mas passado um ano, diante da situação em que o Brasil se encontrava, que não a agradava, ela diz ter “colocado na balança” o fato e estar perto da família comparado com o estilo de vida que ela tinha na Austrália, e optou então por voltar para o país da Oceania.   

E apesar de ter feito essa opção de forma consciente, Julia sabe o preço que paga por criar a filha longe da família. Além de não estar próxima das pessoas que naturalmente a ajudariam na parte prática da criação da Dominique, ela também destaca a parte afetiva e emocional. A decisão dela de morar fora do Brasil priva a filha de conviver com a família no dia-a-dia, o que a faz se questionar, volta e meia, se essa é a escolha acertada.

Mas acredita estar possibilitando uma vida melhor para a Domi na Austrália. E tenta compensar a ausência da família de sangue através do contato próximo com pessoas queridas que estão por perto, que são “a família que a gente escolheu”, como define Julia.
Tento compensar a ausência da nossa família na vida da Domi através do contato próximo com pessoas queridas, que são a família que a gente escolheu.
Sobre o estilo de vida a que Julia se refere como um fator determinante na decisão de voltar para a Austrália, ela leva em consideração o fato de que famílias com filhos que tem uma renda reduzida, seja de mães ou pais solo, seja de dois adultos responsáveis pelas crianças, tem o direito de receber um salário do governo federal, até o filho mais novo completar 6 anos de idade, no caso de dois adultos cuidando dos filhos, ou 8 anos de idade, para pais e mães solo. É o chamado .

Julia não precisa desse auxílio agora, já que tem uma renda considerada suficiente para se manter e à sua filha. Mas saber que existe esse subsídio a fez voltar para a Austrália sem se preocupar em chegar no país e ficar sem renda caso não conseguisse um emprego logo. Ela agora usa apenas o subsídio voltado para o horário estendido na escola da Dominique, que é o , o mesmo para quem tem filhos na creche, que arca com uma porcentagem do valor total de acordo com a renda da família e a carga horária dos responsáveis pela criança.

Julia cita ainda um outro benefício do governo australiano que ela considera importante, que é o , pagamento feito a famílias com renda considerada insuficiente para cobrir todos os custos que se tem com os filhos.

Na opinião dela, esse tipo de auxílio é essencial para mães e pais possam oferecer às crianças do país boas condições de moradia e alimentação. Julia destaca que mulheres que passam por relacionamentos ruins ou até mesmo abusivos, mas dependem financeiramente dos seus parceiros, encontram nesses auxílios uma fonte de renda enquanto buscam estabilidade fora dessas relações.

Sobre as dificuldades que as mães solo imigrantes enfrentam, além daquelas pelas quais qualquer mulher ao redor do mundo que cria os filhos sozinha passa, Julia destaca o preconceito que o imigrante sofre, e dá o exemplo de quando um imóvel está disponível para ser alugado e a imobiliária dá preferência para australianos nativos na escolha dos novos inquilinos. Quando se trata de uma mãe solo com apenas uma fonte de renda, pode ser ainda mais difícil ser aprovada para morar no imóvel escolhido.
O imigrante sofre preconceitos. Para alugar um imóvel em Melbourne, onde a concorrência é grande, ficamos sempre atrás dos australianos nativos. Quando se trata de uma mãe solo, que só tem uma fonte de renda, se torna ainda mais difícil poder escolher onde morar.
Ao falar dos desafios que enfrenta diariamente, Julia adverte que não podemos romantizar a sobrecarga das mães solo dizendo que elas são muito eficientes e que dão conta de muitas responsabilidades ao mesmo tempo. Ela diz receber elogios por ter montado o próprio estúdio de tatuagem, mas lembra que resolveu abrir um negócio seu também por necessidade de ter pra onde levar a filha quando não tem quem cuide dela durante o expediente.

Julia diz que infelizmente ainda há muitos espaços que não aceitam crianças. Não só locais de trabalho mas também ambientes de lazer. Ela conta que foi a um hotel onde disseram que a Dominique não poderia entrar. Pediram que a Julia voltasse num outro momento, sem a filha. Ela bateu o pé e disse que não teria como voltar sozinha, pelo fato de ser mãe solo e a Domi estar sempre com ela.
Julia, que também foi criada por mãe solo, diz que percebe na relação com a filha, o mesmo que a mãe fazia com ela: dividir muito dos sentimentos e da vida, pelo fato de serem a companhia constante uma da outra. E apesar de a Dominique ter apenas 6 anos de idade, ela acredita que os adultos muitas vezes subestimam a capacidade que as crianças tem de entender as coisas.

Mesmo com os inúmeros desafios e dificuldades da rotina de uma mãe solo, Julia destaca a liberdade de criar a filha de acordo com os seus valores, sem questionamentos, o aspecto mais positivo dessa experiência.

Para que as mães solo tenham condições mínimas de criar seus filhos com tranquilidade, Julia sugere que o auxílio financeiro seja oferecido também para mulheres que tem filhos com mais de oito anos, que os períodos de licença-maternidade sejam mais longos, que creches tenham horários estendidos e alternativos, e que o olhar sobre as mães solo seja diferente, para que elas possam frequentar os espaços que querem com suas crianças, pois “onde não se aceita uma criança, não se aceita uma mulher”, destaca Julia.

Ela completa com um recado para outras mães solo: "Eu envio a vocês um abraço apertado. A gente está sempre na corda bamba, tentando equilibrar onde vai colocar as energias, se no social, se no trabalho. Nossa realidade, só vivendo para entender”.


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